Hearts in Atlantis
- Mônica Sanoli
- 31 de out. de 2024
- 11 min de leitura
Hearts are tough, she said, most times hearts don’t break, and I’m sure that’s right… but what about then? What about who we were then? What about hearts in Atlantis?
(Corações são fortes, ela disse, na maioria das vezes eles não se partem, e eu tenho certeza que isso é verdade… mas e naquela época? E quem nós éramos naquela época? E os corações em Atlantis?)
Hearts in Atlantis é uma coleção de novelas e contos publicada em setembro de 1999, ou seja, logo após o acidente do Stephen King. Inclusive, por conta do acidente e da incerteza sobre o estado de saúde do escritor, o livro foi (e ainda é) pouco divulgado. A única história da coleção a ganhar uma adaptação foi a primeira e principal – Low men in yellow coats –, com Anthony Hopkins como Ted Brautigan e Anton Yelchin no papel de Bobby Garfield. O filme foi dirigido pelo Scott Hicks e teve lançamento nos cinemas em setembro de 2001. Apesar de ter gostado do filme, eu o assisti há anos e não tenho memória para falar sobre ele com propriedade aqui, então, este artigo será somente sobre o livro.
A estrutura de Hearts in Atlantis é um pouco confusa; Low men in yellow coats é enorme, provavelmente passando do limite de número de palavras de uma novela. Ou seja, a primeira história da coleção é, teoricamente, um romance curto. Contudo, as histórias seguintes vão de contos muito longos a contos muito curtos. Além disso, Low men tem uma relação muito íntima com a série A Torre Negra, o que não acontece com as outras histórias.
De qualquer maneira, o fio condutor do livro é a década de 1960 e os efeitos que ela teve nas pessoas daquela geração, ou seja, os boomers. As personagens estão interligadas de uma história para outra, mas existe apenas uma que é uma constante em todas elas, apesar de só aparecer realmente no começo e no fim.
Low men in yellow coats
Em uma narrativa em terceira pessoa que se estende por onze capítulos numerados com algarismos romanos, acompanhamos Bobby Garfield durante algumas semanas do verão que mudou sua vida para sempre. Bobby é um garoto que completa onze anos no começo da história, ele mora com a mãe, Liz Garfield, que é secretária na agência imobiliária onde o marido era corretor. Randall Garfield morreu quando o filho tinha apenas três anos, e a única coisa que Bobby sabe sobre o pai é que ele os deixou em apuros financeiros quando se foi. Essa, pelo menos, é a única coisa que Liz fala (e repete constantemente) sobre ele. Conhecemos também Carol Gerber e Sully-John, os dois amiguinhos de Bobby. Ela, que reluta em admitir, mas tem uma paixonite por Bobby; ele, que não para quieto e está sempre brincando de guerra e com o seu ioiô.

A história começa faltando algumas semanas para as férias de verão, quando Ted Brautigan, um senhor de idade, se muda para a mesma casa onde Bobby mora com a mãe – eles moram de aluguel no primeiro andar de uma casa onde outros moradores alugam outros andares. De imediato, Liz não gosta de Ted, antipatia que persiste e causa danos mais pra frente. Bobby, contudo, faz amizade com o novo vizinho, que percebe que o garoto gosta de ler e incentiva o hábito, dando-lhe livros de presente e indicando leituras mais avançadas. Ted logo oferece um emprego para o garoto: ele pede que Bobby leia o jornal para ele todos os dias, em troca de algumas moedas – dinheiro que vai direto para o fundo destinado a compra de uma bicicleta. Bobby aceita, mas descobre que o trabalho é um pouco mais complicado. O que o vizinho realmente quer é que ele fique alerta para qualquer coisa estranha, fora do normal: pipas penduradas em postes, estrelas e luas desenhadas a giz ao lado de amarelinhas nas calçadas, pôsteres divulgando animais perdidos, mas principalmente homens estranhos, vestidos com roupas peculiares e com cara de encrenca. Como Bobby gosta de passar esse tempo com Ted, ele concorda com tudo, apesar de temer pela sanidade do outro e não levar a sério nada do que ele diz sobre esses sinais.
[Spoiler de Torre Negra a seguir]
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Como eu disse anteriormente, essa história tem uma relação muito próxima com A Torre Negra. Ted eventualmente revela que é um breaker que fugiu, e os low men são soldados do Rei Rubro, que foram mandados para recapturá-lo. O interessante aqui é que quando o King escreveu essa história, os três últimos livros da série estavam longe de ver a luz do dia, ou seja, grande parte do enredo do final da série já estava rodando pela cabeça do King há anos. E é difícil não ver a poesia no fato de que foi o acidente – e o medo de morrer sem concluir a história do pistoleiro – que funcionou como gatilho para os últimos livros serem de fato escritos.
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[Fim do spoiler!]
E falando em pistoleiro, Low men in yellow coats transborda com a lore de Torre Negra. Existem conversas na história em que palavras como pistoleiro, feixes e mundo médio são usadas sem preocupação nenhuma com leitores que talvez não conheçam a Torre. É quase como se a história estivesse dentro de um livro de Torre Negra, o que pode confundir bastante leitores que não estão familiarizados com os termos e as aflições do mundo do pistoleiro.
O foco da história, entretanto, é o Bobby, e como o contato que ele teve com o Ted influenciou a visão de mundo dele, o relacionamento dele com a mãe e os amigos, e como ele viveu o resto da infância e adolescência. Em um dado momento, Bobby recebe um convite, que pode ser visto como o convite para a aventura em uma jornada do herói tradicional, mas ele o recusa, fato que parece reverberar em sua mente por vários anos. Digo “parece” porque o que vemos do futuro do Bobby são apenas pinceladas: cenas pontuais do fim daquele verão e da sua adolescência.
O que desencadeia toda a ação do final da história é a sequência de maior suspense na narrativa. Liz Garfield vai passar um fim de semana fora por conta do trabalho e, por falta de opção, deixa o filho aos cuidados do Ted. No domingo, Bobby está passeando pelo parque sozinho quando escuta Carol o chamar de trás de alguns arbustos; a garota apanhou de um grupo de meninos mais velhos que passou o verão enchendo o saco das crianças. Bobby a encontra com lágrimas nos olhos e a camiseta deformada, onde o ombro foi deslocado com a ajuda de um taco de beisebol. Sem pensar duas vezes, ele a pega no colo e a carrega até sua casa, onde espera que Ted possa ajudar. Momentos mais tarde, Liz – que também sofreu violências inenarráveis em sua viagem e cuja sanidade está por um fio – chega em casa e encontra a garotinha sem camisa no colo do velho de quem ela não gostou desde que ele pisou na rua deles. Tudo que acontece depois tem sua origem nessa cena do confronto entre Liz e Ted.
Come to the book as you would come to an unexplored land. Come without a map. Explore it and draw your own map.
(Venha ao livo do mesmo jeito que você chegaria a uma terra que nunca foi explorada. Venha sem um mapa. Explore-o e desenhe o seu próprio mapa.)
Hearts in Atlantis
Depois de passar centenas de páginas ao lado do Bobby e do Ted, o fã de Torre Negra – e até o leitor que não conhece a Torre – parte para a segunda história esperando que ela continue de alguma forma a narrativa da anterior. A própria página de título parece prometer algo nesse sentido, já que acima do nome Hearts in Atlantis pode-se ler: 1966. Porém, a segunda história segue um rapaz chamado Peter Riley em seu primeiro semestre na Universidade do Maine. Ele e vários outros colegas estão lá porque receberam uma bolsa de estudos, o que implica a necessidade que eles têm de ir bem nas aulas e manter uma nota alta. Contudo, o dormitório onde Peter mora é dominado por um jogo de cartas chamado hearts, e quase todo mundo, cedo ou tarde, se descobre viciado pelo jogo, inclusive quando suas notas começam a cair vertiginosamente.
Em primeira pessoa, o narrador gasta mais algumas centenas de páginas para detalhar os efeitos do vício. No plano de fundo, a Guerra do Vietnã vai de um fantasma sobre o qual ninguém quer falar para o futuro inescapável daqueles alunos que perderam a proteção da universidade. Peter comenta de colegas cujas notas caíram tanto que o esforço de voltar a estudar após as férias de fim de ano nem valeria a pena. Semanas depois, estes são convocados para a guerra e não são mais vistos por ninguém. Ainda assim, os outros continuam jogando e apostando os poucos trocados que têm dentro do bolso. No livro Hearts in Suspension, uma publicação da Universidade do Maine que reúne textos do Stephen King e de outros ex-alunos, King fala que, para ele, o vício era em álcool, não em cartas. Leitores atentos da obra do King perceberão que Hearts in Atlantis, mais do que qualquer outra história neste livro, é repleta de referências autobiográficas. Talvez seja isso, a proximidade que ele tem com esta segunda história, que a torne tão maçante.
Depois de duas ou três tentativas falhas de parar de jogar, é incrível que Peter narre mais uma quarta, e uma quinta etc. O vício, como questão central do enredo, é explorado de um jeito pouco interessante, já que o Peter, como narrador, não faz nenhuma tentativa de aproximar o leitor do conflito que ele estava vivendo na época. Peter narra de algum ponto no futuro, décadas depois de todos aqueles acontecimentos, deixando que o tempo entre o narrado e o narrador roube o impacto emocional que aqueles fatos poderiam ter no leitor.
Em meio àquela pandemia de hearts, os garotos veem um de seus colegas, que era antissocial e uma pessoa com deficiência, começar a usar o símbolo hippie (☮️) nas costas do casaco. Após este garoto sofrer um acidente e quase ser preso pelo seu ativismo, Peter e seus amigos mais próximos o defendem e desenham o símbolo em suas roupas também, o que os leva a confrontar, muitos pela primeira vez, o absurdo da Guerra do Vietnã. Vendo a realidade do mundo naquele momento, e talvez inspirados pelo ativismo do colega, Peter e os amigos viram as costas para o jogo em definitivo e conseguem seguir com suas vidas.

A personagem de Low men in yellow coats que se repete aqui é Carol Gerber, que também está em seu primeiro semestre e divide o trabalho no bandejão da universidade com o Peter. Os dois vivem um breve romance, mas Carol é consumida pelo movimento pacifista e passa a andar na companhia de grupos que fazem grandes manifestações. Durante uma conversa com Peter, ela nos revela que perdeu o contato com Bobby – que se mudou para Boston com a mãe, ainda em 1960 – e que Sully-John, com quem namora atualmente, foi convocado para o Vietnã. Ele, que sempre brincou de guerra e não enxerga a loucura do que está acontecendo, está muito animado para ir lutar pelo seu país. É por ele, então, que Carol protesta, para que ele volte vivo para casa. Ela chega a ser presa em um protesto em Bangor, e, mais tarde, se envolve com um grupo mais radical. Peter, no entanto, perde contato com ela ainda no primeiro semestre, quando ela abandona o curso.
Hearts can break. Yes. Hearts can break. Sometimes I think it would be better if we died when they did, but we don’t.
(Corações podem ser partidos. Sim. Corações podem ser partidos. Às vezes acho que seria melhor se nós morrêssemos quando isso acontece, mas não morremos.)
Blind Willie
O terceiro conto, assim como os próximos, se passam décadas depois dos anos 1960, contudo, são consequências de tudo que aconteceu durante os anos de guerra.
Blind Willie acontece em 1983 e nos apresenta um veterano que coloca terno e gravata todos os dias e sai para trabalhar em seu escritório em algum canto de Manhattan. Contudo, após entrar no escritório, ele troca de roupa e sai do prédio um homem cego, que passa suas tardes pedindo esmola em frente a uma igreja. Tudo indica que ele realmente perde a visão durante essas horas da tarde, e é assim que ele ganha a vida. O texto insinua brevemente que sua esposa conhece a natureza do seu trabalho, mas que nenhum deles fala sobre isso.
Carol Gerber aparece de novo, em recortes de jornal que William coleciona. No seu escritório, ele tem pastas e mais pastas de notícias e fotos através dos quais acompanha a vida dela. Isso porque William segurou Carol para que outro garoto a batesse com um taco de beisebol no verão de 1960, e a culpa por ter participado daquele ato o consumiu. Através dos recortes, descobrimos que Carol e o grupo do qual ela fazia parte, todos procurados pela polícia, foram dados como mortos após um incêndio que ocorreu em uma casa em Los Angeles. William não acredita que ela esteja morta, principalmente porque seu corpo não foi encontrado, e reza para que ela esteja bem. Ele passa longos minutos escrevendo “eu sinto muito pelo que fiz com Carol Gerber” em um caderno antes de sair para pedir esmola. William foi para a guerra e lutou no mesmo grupo de Sully-John e de um colega de Peter Riley, o mais viciado em hearts de todos.
Why we’re in Vietnam
Em 1999, Sully-John, agora um vendedor de carros, pega a estrada e vai para Nova York para o funeral de um dos seus amigos veteranos. Ao longo do dia ele pensa em tudo que viveu no Vietnam e tem a oportunidade de xingar Carol Gerber uma porção de vezes. Ela, que tinha sido sua namorada e virou uma ameaça nacional. Ela, que, junto de seus amigos hippies, jogou uma bomba em um prédio que não estava abandonado e matou várias pessoas. Ela, que ele espera que tenha mesmo morrido no incêndio em Los Angeles. Ao contrario de Bill, da história anterior, John Sullivan não nutre carinho nenhum pela ex-namorada.
Voltando do funeral, ele fica um tempo parado em um congestionamento, oportunidade perfeita para bater papo com o fantasma da mulher que o colega de Peter Riley matou no Vietnam. Aquela senhora acompanha Sully-John desde que ele e William acordaram em um hospital após quase morrerem. Ela nunca diz nada, mas está sempre lá, olhando para ele.
John tem uma alucinação bizarra em que objetos que representam o materialismo ao qual a geração de 1960 – e a sociedade moderna como um todo – se entregou caem do céu sobre os carros parados: um piano, um micro-ondas, ingressos para shows, geladeiras etc. Ele sai de seu carro e vê pessoas morrendo esmagadas e decapitadas, mas quem morre, na verdade, é ele. Sozinho. De um ataque cardíaco. Parado no trânsito.
Heavenly shades of night are falling
O último e menor conto da coleção acontece na cidade natal de Bobby, Carol e SJ, no dia do funeral do veterano. Bobby viaja para lá e, ao final do dia, se senta no parque, nas arquibancadas do campinho de beisebol, em frente aos arbustos por trás dos quais ouviu Carol chorando e chamando por ele naquele verão. Bobby, que afinal de contas cresceu e teve uma vida normal, com esposa, filhos e um cachorro, foi até lá porque recebeu uma mensagem improvável de Ted Brautigan sugerindo que Carol estaria ali também. Quando viu a foto da casa queimada em Los Angeles, Bobby acreditou que Carol estava morta, mas não poderia deixar de fazer a viagem e conferir por ele mesmo. Ele explica tudo isso para a mulher que se senta ao lado dele nas arquibancadas, a mulher que lhe dá um beijo na boca e que, tirando uma cicatriz que marca todo o seu rosto, é igual a sua amiga de infância. A mulher que agora se chama Denise.
The redness was going out of the light now; the remains of the day were a fading pink, the color of wild roses.
(A luz estava ficando menos vermelha; o que restava do dia era um rosa efêmero, a cor de rosas selvagens.)

Tenho minhas dúvidas se Hearts in Atlantis é um livro que agradaria leitores novos ou pouco constantes do King. Tirando Low men in yellow coats, que brilha justamente por ter uma conexão forte com Torre Negra, os contos são mal trabalhados porque tentam se amarrar a uma personagem que não é desenvolvida na página. Tudo o que vemos sobre Carol Gerber nos é mostrado de longe, sob diversos filtros. O último diálogo entre Carol e Bobby flerta com a possibilidade de ter sido Randall Flag quem seduziu Carol e outros jovens e os convenceu a se tornarem radicais. Teria sido um livro bem diferente e mais interessante se essa ideia tivesse sido explorada em primeiro plano.
Como fã de Torre Negra, a parte que mais me interessa nas 672 páginas da edição da Pocket Books é, naturalmente, o Ted Brautigan. Espero falar mais sobre ele aqui.
Até a próxima leitura,
long days and pleasant nights…
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